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quarta-feira, janeiro 26

 

Amazing Grace - 2ª parte

Redimir (do Latim redimere): Resgatar ou tirar da escravidão, aquele que está cativo, pagando por isto algum preço.

Ainda que a teologia cristã tenha tido o seu período fundador e mais especulativo por entre o universo cultural grego e neo-platónico a verdade é que o período seguinte, estabilizador e normalizador da doutrina, aconteceu já num universo romano. E foi em latim que se fixou o nosso cânone católico; foi no latim da Vulgata de S.Jerónimo, que se fixou a Palavra de Deus. E agora que o latim sucumbiu ao vernáculo, convém ainda assim regressar por vezes a ele (tal como ao grego e ao aramaico) para tentar perceber um pouquinho melhor aquilo em que acreditamos.
Vem isto a propósito da redenção, conceito que, como dizia eu há 3 semanas (!), me é tão caro. Disse-me um amigo meu, advogado e latinista, que a palavra redimere fazia parte do Direito Romano. A tomada de escravos entre os inimigos de Roma, a sua venda, a sua libertação, o seu resgate, eram então assuntos sérios tratados por juristas sérios. Fizeram-se leis e houve jurisprudência. Inventaram-se termos jurídicos. E a redemptionis significava exacta e precisamente isto: salvar alguém cativo pagando um preço, um resgate.
Penso pois que a teologia cristã primeva terá tomado este conceito do Direito Romano e o aplicou a Jesus: o preço da Redenção para a espécie humana em geral, cativa como estava do pecado, foi a Cruz. Tão simples como isso. Ou seja, redenção significa libertação mas tem um preço, pago por nós próprios ou por outrem em nosso nome. Vamos então por partes.
A libertação. Do mal, do pecado, do vício, da dependência, do orgulho, do ego, da angústia, do corpo, da ânsia, do imediato, do que nos tolhe a alma, do que nos impede de sermos verdadeiramente humanos, do que nos isola dos outros, do que nos afasta de Deus. Em suma, e isto verdadeiramente não é um conceito unicamente cristão, a libertação de nós próprios.
O preço. É simples, é precisamente aquilo de que nos devemos libertar. É apenas retribuir o gesto que Deus encarnado em Cristo nos fez: oferecer-nos a nós e a nossa vida, oferecer o nosso amor mas também o nosso sofrimento. A quem? A tudo aquilo que nos aparece. A tudo aquilo que possa fazer descentrar a nossa vida, o nosso interesse, de nós próprios, do nosso ego, daquele inefável orgulho que nos mina. O preço da redenção é sempre uma renúncia. Uma renúncia que nos acrescenta. E nos liberta.
O pecado. Tantas vezes pensamos que é a sua remissão que nos salva. Mas deixem-me voltar ao Direito: remissão é um contrato entre um devedor e um credor pelo qual se extingue a dívida daquele. É bem verdade que o pecado é uma dívida que vamos criando com Deus e que a misericórdia deste quer-no-la perdoar. E penso que perdoa. Mas não é apenas isso que interessa a Deus e portanto a nós. Em estado de pecado estamos nós sempre, repetidamente. Lutamos contra alguns, persistimos noutros mas quando a coisa aperta arrependemo-nos de todos. E tenho para mim, pela forma como sinto Deus, que somos perdoados. Mas não é isso o estado de redenção, a única forma de sermos justificados.
E, embora confusamente, começo a chegar ao meu ponto: a verdadeira graça, a amazing grace de que o bom do John Newton nos ensinou a cantar, é a redenção. Eu cá não sou teólogo mas engenheiro, mas parece-me que a redenção é o momento de reencontrar Deus, de O ver tal qual Ele é. É um momento preparado em vida mas que se calhar só chega depois da morte. Eu diria que é em vida que devemos ir pagando o seu preço, o resgate, mas à excepção dos iluminados e santos, é já passado o véu que a libertação é plena, que a redenção se consuma.
E reside aqui grande parte do meu catolicismo. É por aqui que não me entra o Lutero, o Calvino, o Zwingli. É que para mim a Fé, por si só, não é a suprema graça, não justifica nada, não é um fim em si mesmo. Aliás, a Fé, o júbilo de a ter, a sensação de pelo simples facto de a ter se ocupar já um lugar da frente na fila para o Céu, pode até afastar-nos da redenção. Para mim só se redime aquele que se sentir miseravelmente cativo das misérias que nos prendem e afastam de Deus. Só se redime quem tiver disposto a pagar o preço necessário: esvaziar-se de si, libertar-se do esplendores do corpo e sobretudo do espírito, livrar-se do ego tão facilmente insuflado, matar o orgulho sobretudo aquele que é mais insidioso, o orgulho do crente. É por isso que olho com preocupação aqueles meus irmãos crentes, católicos ou protestantes, cristãos ou não cristãos, que acreditam que a sua fé e a sua luta contra o pecado os justifica perante Deus.

E volto então ao hino de John Newton. Fico satisfeito por ele quando ele diz:

Oh! que espantosa graça (e doce som)
que salvou este náufrago que eu sou!
Estando eu perdido me encontrou,
estando eu cego se me revelou.

mas eu, em consciência, não posso dizer melhor que:

Oh! misteriosa graça, doce dom,
salva este náufrago que eu sou!
Estou perdido, não vejo, não ouço som;
Apenas espero a mão de quem nos amou.


Acho admirável poder dizer-se:

Foi uma graça que me tornou temente,
mas uma graça com que meus medos aliviei;
Tão preciosa se me revela esta graça,
desde que finalmente eu acreditei!

mas eu, pobre de mim, apenas que:

É uma graça que eu temo mas Te peço,
Tão preciosa ela me aparece!
Quero tê-la mas não a mereço,
Será que apenas crendo ela acontece?

E o bom do John diz mesmo que:

Através de perigos, tormentos e abismos,
finalmente consegui chegar;
Foi essa graça que me trouxe a salvo,
e será ela que a casa me irá guiar.

É excelente. Mas para mim é mais assim:

Passei perigos, tormentos e abismos,
E outros ainda me surgem para passar;
Sei que sem a graça não conseguirei,
Sei que sem ela não me irei salvar.

E por aí adiante...

E pronto, eis o que penso da Graça. Não estou certamente nela mas acredito ser possível um dia estar. Mas da mesma forma que desejo esse dia, também o temo. E tenho esperança, esperança em que Deus se apiede de mim. Por ser pecador e ser católico. Por ser católico e ser pecador.
Para terminar de uma vez esta amazing grace, queria apenas recordar uma cena do filme “A Paixão de Joana D´Arc”, de Carl Dreyer. É uma cena dramática quando o inquisidor pergunta à mística francesa se ela se considerava em estado de graça. E ele, que no fundo quer salvá-la, adverte-a: “Tem cuidado, Joana, porque é uma pergunta perigosa!” E a Joana responde-lhe: “Se estou em estado de graça peço a Deus que mo conserve; se não o estou, peço-lhe que Mo conceda”. Morreu na fogueira como morreria sempre, qualquer que fosse a sua resposta. Mas, deixando para Deus a resposta, morreu sem dúvida redimida.

José [GUIA DOS PERPLEXOS]

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